Certas civilizações do mundo antigo, como Grécia, Mesopotâmia e Roma, são estudadas até hoje não só por seu legado político e cultural, mas também pelas estratégias que desenvolveram para manter o poder. Uma das mais emblemáticas foi a política do pão e circo, implementada por Otávio Augusto, primeiro imperador romano, entre 27 a.C. e 14 d.C.
Com o império em expansão e o aumento da desigualdade social, os romanos perceberam que alimentar e entreter a população era uma forma eficiente de conter revoltas e garantir estabilidade. Distribuíam pão e trigo aos plebeus empobrecidos e promoviam espetáculos grandiosos, como lutas de gladiadores e teatros públicos. Era uma forma de distração, mas também de manipulação. E o mais impressionante: essa lógica ainda sobrevive — adaptada aos tempos digitais e às democracias frágeis.
Hoje, vemos gestores municipais adotando práticas que, embora revestidas de modernidade, guardam a mesma essência romana: distração, espetáculo e manipulação através do entretenimento. Shows com valores elevados, influenciadores com condutas polêmicas transformados em heróis populares, contratos turbinados e postagens estrategicamente planejadas nas redes sociais mostram como a política virou performance — e a cultura, palco de autopromoção.
O caso de Alta Floresta (MT) é sintomático. A prefeitura autorizou o repasse de R$ 2 milhões para a Expoalta 2025, num evento que já é tratado como vitrine política. Ao mesmo tempo, o vice-prefeito utilizou suas redes para defender um influenciador que foi detido em Colíder por incitação ao tumulto, transformando o episódio em palanque digital. Não se trata de um caso isolado, mas de um padrão preocupante: o uso da máquina pública para projetar figuras individuais em vez de servir ao bem comum.
Mais do que o gasto em si, o problema está na falta de transparência. Muitos contratos são divulgados tardiamente ou com informações genéricas, dificultando o controle social. Em alguns casos, sequer se conhecem os critérios para a escolha de artistas ou das empresas contratadas. O que deveria ser um processo democrático e participativo se converte em uma engrenagem fechada, onde poucos decidem, e muitos apenas assistem.
A comunicação institucional também tem sido distorcida. Em vez de informar com clareza e responsabilidade, muitos canais oficiais de prefeituras se transformaram em vitrines de propaganda pessoal. O foco deixa de ser o serviço público e passa a ser o marketing político, com postagens emotivas, recortes de vídeos e slogans cuidadosamente montados para gerar curtidas — e não consciência.
A Justiça Eleitoral começa a reagir. A cassação do prefeito e vice-prefeito de Alta Floresta, por uso indevido das redes sociais, é um marco. A juíza Janaina Rebucci Dezanetti, ao manter a decisão e aplicar multa por embargos protelatórios, fez valer a Resolução TSE 23.735/2024, reafirmando que os ambientes digitais também são espaços públicos — e como tais, devem seguir as leis que garantem igualdade e lisura nos processos eleitorais.
Enquanto isso, os artistas locais seguem à margem. Grandes nomes da indústria cultural — que hoje operam como corporações — recebem até R$ 800 mil por apresentação, enquanto músicos regionais dividem R$ 3 mil entre seis integrantes. Não se trata de questionar estilos musicais, mas de refletir sobre o desequilíbrio e a concentração de oportunidades. A cultura deve ser meio de transformação e inclusão, e não instrumento de desigualdade.
Mais do que nunca, é urgente repensar a política cultural como ferramenta de cidadania. Conselhos municipais, Ministério Público, imprensa e sociedade civil têm um papel essencial em acompanhar e fiscalizar o uso dos recursos públicos. Não se trata de demonizar eventos ou proibir o entretenimento — mas de assegurar que tudo seja feito com responsabilidade, equidade e respeito ao cidadão.
Afinal, a nova Roma pode até ter Wi-Fi, mas o povo não é plateia. É sujeito de direitos. É protagonista.